
João Goulart: o bon-vivant levado ao trabalhismo
João Goulart foi um presidente nascido das elites, levado ao trabalhismo pelas circunstâncias políticas, mergulhado numa falsa ideia de comunismo pela conjuntura social. Assim o historiador Jorge Ferreira define sua trajetória política, das estâncias e do caudilhismo gaúcho ao golpe orquestrado pelas elites civis anti-trabalhistas e executado pelos militares, então herdeiros de um misto de fascismo integralista e autoritarismo do Estado Novo. Curiosamente, o mesmo que gestou Goulart como ministro do trabalho do governo eleito de Vargas (1951-1954).
Em “João Goulart: uma biografia”, livro publicado em 2011 pela editora Civilização Brasileira, 714 páginas, o autor define aspectos macropolíticos, micropolíticos e pessoais que construíram o presidente do Brasil entre 1961 e 1964. Isso desde a sua origem das elites gaúchas, herdeiras do caudilhismo de Borges de Medeiros e Júlio de Castilho, passando pela criação política por Vargas e a aliança com Leonel Brizola em sua maturidade política. Ferreira faz, também, um passeio pela história da política sui generis do Rio Grande do Sul.
Gaúchos na política
História particular porque, de um estado com tendência isolacionista consequente de seu passado separatista, formou três líderes de relevância nacional e construtoras do Brasil moderno em 50 anos, desde Getúlio Vargas, passando por João Goulart e chegando a Leonel Brizola. Os dois primeiros, presidentes da república, sendo Vargas por muitos tido como o principal líder da história brasileira. O último, principal exilado do regime militar e que teve uma presidência improvável impedida, primeiro pela interdição da democracia pela ditadura, depois pela ascensão meteórica de Luís Inácio Lula da Silva.
Presidência, golpe, decadência e morte
A obra revela pesquisa especialmente acurada quanto aos três anos da gestão Goulart, em que greves se espalharam por todo o Brasil, campanha popular garantiu sua posse inicialmente obstruída pelas elites brasileiras, discurso precipitado prometeu reforma agrária às margens das estradas brasileiras e enfureceu as elites agrárias, um atentado a tiro quase o matou em Belo Horizonte e, ao fim, sua própria vontade de proteger o povo brasileiro de uma guerra civil demoveu militares legalistas de resistirem em proteção ao seu mandato.
Governo que, embora não eleito diretamente para presidente, tinha legitimidade constitucional como vice-presidente, tendo o trabalhista herdado a chefia do Executivo a partir da renúncia esdrúxula de seu antecessor, Jânio Quadros (1961), que deu um blefe de ameça interna para renunciar e conquistar apoio popular, mas viu-se ignorado pelo povo e pelas instituições, passando vergonhosamente à história como uma das figuras mais caricatas da política brasileira.
Ferreira passa distante das teorias da conspiração que apontam seu envenenamento pelo serviço secreto da ditadura. Exilado no Uruguai, Goulart morreu vítima de um infarto fulminante e prenunciado. Seus hábitos pessoais variavam de idas e vindas com belas mulheres, antes de se casar com uma delas, a icônica Maria Thereza Fontella, até o tabagismo inveterado, a imersão em uísque e o especial apreço por carnes gordas das tradições culinárias gaúchas.
Embora não se descarte o atentado, mais provável é que tenha sucumbido à vida desregrada e ao estresse de uma vida política conturbada e marcada pela perseguição. Portanto, os militares teriam influência em sua morte precoce, aos 57 anos, mas não a determinaram, segundo o argumento de Jorge Ferreira.
O autor, porém, não aborda as suspeitas que pairam sobre as também enigmáticas mortes de Carlos Lacerda, também por infarto, e a mais suspeita de todas, a do ex-presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), vítima de um acidente rodoviário na Via Dutra, em que uma carreta atingiu frontalmente o carro que o levava de São Paulo ao Rio de Janeiro.
Por que ler?
Entender João Goulart não é algo restrito aos horrores da ditadura. Pelo contrário: sua trajetória política ali se encerra e ele passa discretamente ao ostracismo, sem participação nos episódios mais relevantes do regime militar. Entretanto, é fundamental entender seu caminho em paralelo com o fim da hegemonia das elites rurais em que cresceu, o surgimento de uma classe trabalhadora urbana, incentivada por seu conterrâneo, Vargas, e o colapso da frágil República de 1945 devido ao acirramento da luta de classes naquele período.
Esta que, na verdade, tem sua origem no varguismo e tornou-se uma bomba que estourou no colo de um jovem governante que, na verdade, aproveitou a vida enquanto pôde e foi inercialmente alçado a uma presidência improvável, levado até lá por seu carisma e mesmo charme e beleza, além de origem altamente privilegiada e apadrinhamentos políticos circunstanciais. Presidência esta presivivelmente colapsada.