
Dança Com Lobos: heroísmo anos 90 e a ignorância atual
A história de um homem branco que luta com todas as suas forças para salvar os índios, após uma experiência antropológica quase intuitiva que terminou por transformá-lo em um deles. Lindo, não? Não. O identitarismo pós-moderno terminou por considerá-la uma história de “salvador branco”, ou “white savior”, o original em inglês.
É essa expressão do anedotário woke que, além de ser mais um entre muitos fatores moralistas e limitadores da arte, tal como a exigência de diversidade étnica em produções sobre períodos históricos ou cenários de fantasia imersos na cultura europeia, terminou por sacrificar “Dança Com Lobos” (1990), filme dirigido por Kevin Costner, que também atua no papel principal.
O branco e os indígenas (sem spoilers)
No filme, Costner interpreta John Dunbar, um soldado da Guerra Civil que faz um ato heroico numa batalha contra as tropas confederadas, e depois disso recebe a benesse de escolher sua transferência para serviço militar pelo resto da vida. Surpreendentemente, ele escolhe ir à fronteira norte-americana, o que na época significava viajar até as bordas com o México, na metade da América do Norte. Embora fosse território mexicano, a região ficava ao Deus-dará do ponto de vista branco, mas era habitada pelos povos Lakota, à época do filme chamados de Sioux.
Dumbar se estabelece lá, ergue ali um forte com troncos de madeira e tenta manter correspondência com o Exército, embora suas cartas não cheguem e, muitas vezes, sequer sejam buscadas, ficando ele também sem se comunicar. Os Estados Unidos, ainda se recuperando da guerra, a princípio não se importavam com a região.
Isso faz com que, com o passar do tempo, os índios tenham coragem de se aproximar e, John, de corresponder, quebrando a desconfiança que, naturalmente, eles teriam um pelo outro, visto que eram dois povos buscando conquistar/manter a terra. Dunbar e os Lakota estabelecem boas relações que chegam a convivência plena, com John fazendo amigos como Dez Ursos, Pássaro Esperneante e Vento no Cabelo.
A rigidez do forte e da aldeia terminam e os dois espaços passam a ser frequentados pelos índios e pelo branco, que participa de caçadas por búfalos, casa-se com uma branca criada pelos índios chamada De Pé com Punho e, finalmente, ganha seu nome indígena: por saber domesticar e brincar com um lobo, algo que os Lakota não dominavam bem, é batizado Dança Com Lobos, visto que os indígenas interpretam sua brincadeira como dança.
De herói a inimigo (com spoilers)
Contudo, chega o momento em que, com anos de estabilidade norte-americana, os Estados Unidos declaram o destino manifesto, de conquistar todo o território da América do Norte, e chegam territorialmente à região Lakota. Dunbar busca uma solução diplomática, mas sequer é aberta conversa, porque é preso e tem seus animais sacrificados. É considerado traidor da pátria e vai ser condenado à morte, o que só não ocorre porque os índios organizam um resgate e todos fogem para um local alto onde o povo Lakota acampa aos invernos.
O desfecho é parcialmente aberto, com a decisão de Dubar de fugir com sua esposa, sozinho, para não atrair o Estado americano para o refúgio dos indígenas. Mas um letreiro sobe ao final, mostrando que aquele povo foi derrotado no fim do século XIX e, dele, restaram poucas reservas e a cultura, embora etnicamente já quase inexista.
Salvador branco
O fato de o filme ter por protagonista um homem branco, numa história em que se trata do poder norte-americano ameaçando os indígenas, era pra ser considerado algo natural. Ora, se os índios não tinham o mesmo poder que os brancos, um homem moralmente destacado entre os brancos seria a pessoa necessária para tensionar o eixo de poder e permitir abertura para a resistência indígena.
E é o que aconteceu na vida real. Na história. Joaquim Nabuco foi isso no abolicionismo. Os irmãos Villas-Boas na criação da reserva do Xingu. Abraham Lincoln na abolição da escravidão americana. Portanto, condenar este tipo de história, sob a prerrogativa de que devem ser contadas histórias de emancipação autônoma dos oprimidos, é simplesmente ocorrer em mais uma das enfileiráveis mentiras aconchegantes do identitarismo. Há espaço para todo tipo de história, desde a dos movimentos de luta até às de importantes negociadores em defesa das minorias, mas essas últimas caíram no índex do moralismo hollywoodiano.
Por sinal, não se encontra este filme em nenhuma plataforma de streaming, ainda que ele tenha vencido sete prêmios do Oscar, incluindo Diretor e Filme.