
Beethoven e a tempestade na música erudita
Um dos grandes feitos da humanidade, talvez o ponto alto da música erudita, é a Sinfonia n°9 de Beethoven, composta ao longo da década de 1810s e apresentada pela primeira vez no teatro Kärntnertor de Viena, hoje demolido para a construção da Ópera Estatal de Viena, mas ainda existente no espírito da nova instituição. Naquele dia, Ludwig von Beethoven assombrou Viena, o que foi reverberando pelo mundo, em tempos de comunicação vagarosa e que se espalhava mundialmente como as ondas de um lago.
Isso por quê?
Porque o autor estava surdo. Havia mais de dez anos. Uma sinfonia em quatro movimentos ambiciosos, grandiosos, era composta por um homem incapaz de ouvir. E, mais, trazia ao modelo de composição sinfônico – de quatro atos de cerca de 20 minutos expressando diferentes momentos que, mimeticamente, elevavam algum aspecto do sentimento humano – o primeiro trecho em coral da história. Tratava-se do poema “An die freude”, ou “Ode à alegria”, do filósofo e poeta Friedrich Schiller, expoente do romantismo no pensamento e na literatura, o que faria de Beethoven um símbolo do romantismo na música.
Ímpeto e tempestade
Quadro "O viajante sobre o mar de névoa", pintado em 1818 pelo alemão Caspar David Fredrich, é costumeiramente usado para representar o período artístico. Retrata um homem prestes a enfrentar a força da natureza, unindo-se a ela.
Esses eram os dois princípios que caracterizavam o romantismo. A vontade humana e o prevalecer de seus sentimentos deram à tônica daquele espírito do tempo, regido pelo ceticismo em relação a Deus, pela capacidade do ser humano de se mobilizar contra o poder instituído, na esteira das revoluções Francesa e Americana. Isto é, pela crença nos sentimentos como força motriz da ação humana.
Era chamado, por seus precursores alemães como Johann Wolfgang von Goethe e o próprio Schiller, “Sturm und Drang”, que eram o ímpeto e a tempestade. Isto é, aquilo que de mais primitivo existe no humano, reordenado pelo poder do logos, a fim de transformá-lo num ser regido por paixões capazes de colocar toda a civilização em movimento.
Beethoven tornou-se um símbolo desse fenômeno cultural. Um surdo que, por amor à música, tornou-se a tempestade que tudo move, encontrando formas inovadoras de composição. Ferramentas como serrar as pernas do piano para “ouvir” suas músicas por meio da ressonância do som na tábua corrida de casa, ou a ousadia de usar de letra para modular o momento alto de sua composição, compensando a limitação auditiva e garantindo a expressão clara dos sentimentos de reencontro com a beleza do mundo.
Reencontro dele próprio, alguns diriam. Ou da humanidade de um todo, saída dos massacres napoleônicos e dos desmandos do absolutismo e do clero pré-Iluminismo.
O poema de Schiller
Sobre o poema usado no quarto movimento da Sinfonia n°9, é longo em sua totalidade, mas o trecho mais conhecido, usado por Beethoven no trecho principal do movimento, é:
Freude, schöner Götterfunken,
Tochter aus Elysium,
Wir betreten feuertrunken,
Himmlische, dein Heiligtum.
Deine Zauber binden wieder,
Was die Mode streng geteilt,
Alle Menschen werden Brüder,
Wo dein sanfter Flügel weilt.
Em português:
Alegria, tu belo relâmpago divino,
Filha do Elísio,
Ébrios de fogo estamos entrando
no Celestial, teu santo lar!
Teus encantamentos unem,
O que o costume severo dividiu,
Todo homem se torna um irmão,
Onde tuas asas gentis permanecem
A expressão da emoção referente à unidade entre humano e natureza, colocando o humano junto à própria existência para tirar de seu primitivo o melhor, desde que sob a ponderação do logos, aí está na elevação moral e nas referências eruditas misturadas à fusão entre os sentimentos humanos e os elementos mais pitorescos da natureza: o relâmpago, o fogo.
Daí por diante, o uso das palavras como expressão de sentimentos daria a tônica das composições eruditas no século XIX, quando as óperas tomariam o lugar das sinfonias entre as mais valorizadas e cobiçadas composições musicais, alçando o ambicioso Richard Wagner a expoente maior do período. Beethoven, um compositor clássico, não participa do romantismo como movimento, mas bebe nele e estabelece seus futuros parâmetros no gênero aplicado à música.
Os outros movimentos
Teatro Kärntnetor, onde foi apresentada pela primeira, em 1824, a Sinfonia n°9. Foi presenciada por Beethoven, mas regida pelo maestro e diretor do teatro, Michael Umlauf, devido à surdez do compositor
Dos quadrantes da Sinfonia n°9, o primeiro é bem suave e reconfortante, com princípio em notas longas e altas, a fim de situar o ouvinte no tom buscado: a elevação tempestuosa romântica, influenciada por Schiller, de quem Beethoven era amigo. O tempo escolhido é Allegro, um dos mais mimeticamente esfuziantes daquele tempo, usado por Vivadi, por exemplo, no famoso primeiro movimento de “As quatro estações” (1723). Mas a maior parte do movimento submerge ao interior dos sentimentos, com movimentos tênues e de timbre delicado, evocando paz e harmonia que serão quebrados no segundo movimento.
Este, tempestuoso. Num tempo Scherzo Molto Vivace e Presto, que lembra o Allegro con Brio da Sinfonia n°5, com a diferença de que o Allegro é rápido e elevado, ao passo que o Scherzo é burlesco, irreverente. Com ritmo demarcado, quebras duras entre as notas, trechos crescentes consistentemente longos, quebrados por recomeços do mesmo movimento, progressivamente mais fortes e incisivos, são a porta de entrada do “sturm und drang” na peça. Ali, Beethoven, como já mencionado, parece retornar ao padrão do começo de sua Sinfonia n°5, o que já pode ter assombrado espectadores do Kärntnertor, por demonstrar um compositor surdo retornando ao seu, até então, melhor momento.
O terceiro movimento é o mais calmo, em modo Adagio, que é cadenciado e permite às melodias e os sons das madeiras e cordas ressaltarem independentemente. O retorno em tempo, além de permitir respiro ao ouvinte, após dois movimentos à flor da pele, prepara-o para a surpresa do retorno ao Allegro no quarto e célebre movimento.
O encontro entre o som e a palavra
Manuscritos originais de Beethoven para composição da Sinfonia n°9.
Quando ascende o movimento principal da obra, ele é ousado a ponto de guardar seis tempos musicais num só trecho de 25 minutos, começando num Presto, o mais acelerado e dedicado à demonstrar acurácia dos músicos em cumprir com as notas, passando por tempos mais lentos até retornar ao Presto cantado pelo ponto alto do Ode à Alegria. Aqui, a variação inusitada de tempos musicais ocorre porque, já pensando à maneira romântica das décadas seguintes, Beethoven abre mão do aspecto puramente musical, partindo à definição da música servindo à palavra.
A capacidade de, finalmente, fazer encontrar coral e sinfonia, assombrou a comunidade musical vienense e isso se espalhou pela Europa. Nas décadas seguintes, o quarto movimento da Sinfonia n°9 seria tal influente que os futuros compositores escanteariam o estilo sinfônico. Apesar de obras relevantes como a Sinfonia Novo Mundo, de Antonin Dvorak (1893), os meados e finais de século XIX seriam o período das grandes óperas.
Ficou Beethoven como o homem que, saído da surdez, reinventou a música erudita, justamente no espírito de seu tempo: no ímpeto e tempestade, na força dos sentimentos humanos que faz uso da natureza para vencê-la. A natureza criadora e passional do humano, movendo-o em determinação e amor à música para vencer a natureza rude e impiedosa em seu estado puro, representada pela então dita “doença da surdez”.