
Trabalho Interno: a crise de 2008 trazida às luzes
A crise de 2008 nunca terminou. Essa é a conclusão de muitos economistas e sociólogos, sobre os problemas econômicos e geopolíticos que nós temos hoje. O auge do capitalismo, que supúnhamos ser o tempo da globalização, após a queda dos regimes socialistas europeus, aparentemente não vingou, pelo que vemos desde os anos 2010.
O filme “Trabalho Interno” (2010), documentário dirigido por Charles H. Ferguson e vencedor do Oscar de 2011 em sua categoria, demonstra como o otimismo do grande capital causou o colapso de quase vinte anos atrás, sentido até os dias de hoje, e demonstra como os financistas norte-americanos não aprenderam com as lições de 1929.
As tulipas
Dois momentos históricos mostram o caminho desastroso de quando as grandes corporações, ou elas próprias iludidas ou provocando ilusões, induzem em produtores e consumidores um otimismo tal que beira a surrealidade, e entram com os pés pelas mãos. Uma ocorreu no século XVII, na Holanda, outra no século XX, nos Estados Unidos.
Em 1593, as tulipas foram levadas do leste europeu para uma Europa ocidental que progredia a olhos vistos, saindo do renascimento e iniciando as colonizações. Numa época de exaltação da beleza e de uma Europa que deixava o que se considerava a “obscuridade” da Idade Média, todos queriam a flor. Era símbolo de status e contemporaneidade. Era cool.
Ela se valorizou no mercado e, para suprir a demanda, mais e mais pessoas começaram a plantar tulipas, e o aquecimento do mercado não parava porque, com mais pessoas vendendo, mais queriam comprar, e os preços subiam. Chegou-se a um momento em que uma simples flor era vendida a milhares de florins holandeses, ou moedas de países vizinhos.
A deformidade de uma tulipa valer mais que uma casa, num dado momento, fez com que o ciclo econômico dessas flores caísse de um dia para o outro. Em 1637, com campos de tulipa espalhados por toda Holanda, Bélgica e partes de França e Alemanha, o mercado sentiu severamente a interrupção das vendas, já prenunciadas por pequenas oscilações nos anos anteriores. O resultado foram dois países inteiros, mais regiões dos outros dois, devastados economicamente ao zero, e houve fome, principalmente na Holanda, com agricultores famélicos diante de campos floridos de tulipas jamais vendidas.
Os arranha-céus
Já em 1929, o mercado era mais complexo, e girava em torno de ações das empresas americanas, sobretudo de construção civil, metalurgia e siderurgia, responsáveis pela construção amontoada de vários arranha-céus pelo centro de Nova Iorque e outras cidades americanas. A Manhattan existente hoje vem do boom das construtoras do início do século XX, especialmente no pós-guerra.
Essas empresas se valorizavam por causa da reconstrução da Europa após a Primeira Guerra Mundial, e pilhas de ações eram compradas sem que elas informassem transparentemente, ou mesmo que as pessoas entendessem, que uma hora a Europa estaria reconstruída, e portanto a demanda decresceria.
Porém, percebendo a Bolsa de Nova Iorque como uma roleta de ganha-ganha, os cidadãos norte-americanos entraram na onda do mercado da construção civil e derivados, até chegar ao momento em que mesmo um sapateiro tinha dezenas de papéis dessas empresas. Mais de dez anos após o fim da guerra e com Manhattan já esquadrinhada em todos os seus metros quadrados, o empresariado buscava novas fronteiras internas e externas para sua expansão e manutenção dos lucros, mas não houve tempo.
A desconfiança começou a crescer com o esgarçamento do mercado europeu e a ascensão de regimes nacionalistas no Velho Continente. Num dado momento, foi tanta que todos começaram a vender suas ações, e o fluxo foi tão intenso que a bolsa quebrou.
As casas
As duas lições passaram despercebidas, ou foram negligenciadas, quando o otimismo do mercado americano girou em torno dos imóveis particulares. Dar casa a todos os americanos passou a ser o mote da economia dos anos desde Bill Clinton (1993-2001) e George W. Bush (2002-2009). Bancos especializados em investimentos, como J. P. Morgan e Lehman Brothers, passaram a criar condições cada vez mais generosas para financiamento de imóveis, e dezenas ou centenas de milhares de americanos compraram ou melhoraram suas casas com vultosos empréstimos dessas empresas.
O mundo, porém, mais uma vez foi dando sua guinada. A China começou seu crescimento vertiginoso e passou a oferecer serviços de construção civil em seu território, de forma agora autossuficiente, e fora, em territórios antes de influência norte-americana. O Brasil tinha imensas construtoras operando pelo mundo. A Índia construía seu monopólio sobre a produção de medicamentos. A Rússia deixava a inércia do pós-queda da União Soviética e crescia com Vladimir Putin.
A nova divisão do capital mundial era causadora e, ao mesmo tempo, causa dos erros norte americanos. Para garantir recursos naturais para as empresas americanas, que construíam os edifícios e casas financiados pelos bancos, o governo de Bush fez guerras no Oriente Médio, esvaziando os cofres do Tesouro Nacional. Outras empresas, com o capital sem fronteiras, terceirizavam a produção para fora dos Estados Unidos, incluindo as próprias China e Índia, gerando desemprego interno e transferindo tecnologia e qualificando mão de obra externa.
Esse vício da economia americana fez com que ela colapsasse em duas frentes: uma, americanos começaram a ficar com menos e piores empregos, devido à evasão da indústria, que lucrava às custas do trabalho gerado em outros países. Duas: o aumento contumaz dos empréstimos a operários cada vez mais precarizados – numa mudança econômica de velocidade nunca antes vista, já que nunca tinham experimentado a globalização – não tinha como ser pago e o Governo americano não tinha como socorrer as empresas do mercado imobiliário, já que estava em guerra para garantir insumos para as empresas da construção civil.
A equação deu errado e a crise se instalou. Quebrou o banco Lehman Brothers e salvaram a duras penas o J. P. Morgan. A reação em cadeia atingiu a construção civil e todos os seus fornecedores, também paralisando setores estratégicos à moradia, como o automobilístico e de eletrodomésticos. Milhares de americanos tiveram de devolver as suas casas, incapazes de pagar as contas, e sem ter a quem recorrer, já que os bancos estavam falidos e não poderiam oferecer novas condições.
Tudo feito às escuras
Esse é o termo para “Inside Job”, nome americano do filme, que desvela esses fatos em quase duas horas de duração. Aqui traduzido para “Trabalho Interno”, expressão que não usamos, seria mais como “A portas fechadas” ou “Feito às escuras”, ou ainda “Na calada da noite”.
Fato é que havia todas as informações de bolhas econômicas anteriores, inclusive algumas recentes não mencionadas aqui, como a da Coreia do Sul em 1997, esta socorrida com menos danos. Em todas, o crescimento desenfreado de um setor atingiu seu limite tão abruptamente quanto foi a ascensão. Neste último caso, foi o setor automotivo sul-coreano, encampado pelo americano. No caso principal abordado pelo documentário, os bancos americanos lideraram o que pode ter sido a pior quebra econômica da história.
Muito maior que 1929, embora isso não tenha sido sentido tão imediatamente, com pessoas passando fome e suicídios por todos os Estados Unidos. Isso porque, com muitos e muitos socorros estatais mundo afora, manteve-se um mínimo de operacionalidade no mercado ocidental. No entanto, permitiu-se o avanço descomunal da China e, a princípio, do Brasil, e proporcionou-se a criação e consolidação do grupo BRICS com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Mesmo pequenos países começaram insurreições não antes vistas, como a bomba atômica da Coreia do Norte, o crescimento de grupos guerrilheiros como Hamas e Hezbollah no Oriente Médio, sob a batuta de um Irã empoderado pela retirada dos norte-americanos de Iraque e Afeganistão, e mesmo o desenvolvimento de países africanos como Angola e Quênia, desvinculados do capital internacional e feito a reboque da China.
A crise de 2008, que de início parecia mais amena que a de 1929, pode ter se tornado mais severa, só que administrada a conta-gotas, com a geração millenial ocupando o espaço da geração perdida dos anos 1930. A sonhada globalização sob liderança americana deu lugar ao multilateralismo, com novas áreas de influência sendo criadas em cada continente, sendo a mais recente a iraniana, pressionando o Estado de Israel, posto avançado do ocidente no oriente médio, por meio de seus aliados da guerrilha islâmica. A Rússia sente-se à vontade na primeira guerra entre países europeus desde a Segunda Guerra Mundial.
O principal disso é a falta de empregos. O que começou com a entrega das casas, terminou com uma economia orientada para o espaço abstrato e sem demandas materiais da internet, com o investimento americano nas plataformas digitais e a criação de um tecnofeudalismo, em que as pessoas colhem algum dinheiro como se fosse o trigo da terra de um nobre, este dono de alguma plataforma de mídia que recebe os lucros de sua valorização pelo uso das pessoas em todo o mundo. O emprego mesmo, o trabalho, foi-se embora junto com as casas financiadas pelo Lehman Brothers em 2008, com as vagas precarizadas ocupadas por imigrantes pobres recebendo a concorrência de cidadãos antes de classe média, criando tensões xenófobas e racistas nos países ricos.
Ao menos para o Ocidente, que chega a flertar com o novo fascismo, agora transnacional, com Donald Trump, Marine Le Pen, Giorgia Meloni e forças emergentes em Portugal, Espanha e Alemanha, todos prometendo o retorno dos empregos. O Oriente vai bem, obrigado.