Pelé da Netflix: entre o épico e o político

O documentário Pelé (2021), dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas, lançado pela Netflix no mesmo ano, é um tributo estrangeiro com traços brasileiros ao maior jogador de futebol de todos os tempos. Se bem que, assim não considerado na Argentina e no sul da Itália, em razão de Maradona, e pelos mais jovens e também Argentinos em razão de Messi, muito mais que a média nos outros países guardam esse lugar para o Rei. Vide as manchetes e manchetes produzidas em sua morte, em 28 de dezembro de 2022, igualáveis somente à Rainha Isabel II e Papa Francesco, nos últimos anos.

Valia o documentário? Obvio. Mas e sua condução? É o que vamos ver agora.

In Media Res

O nome deste subtítulo parece estranho, mas ele é ótimo para definir o ritmo narrativo escolhido por Tryhorn e Nicholas. Muito apreciada nas narrativas épicas greco-romanas, além do poema “Os Lusíadas” (1572), de Luís de Camões, consistia no começo da história por um momento de complicação, ao meio da narrativa, mostrando tensão ao leitor – ora espectador – para viver brevemente aqueles momentos e retornar posteriormente ao início, quando a história volta a ser contada de forma tradicional, irmanar-se-á com os momentos iniciais e caminhará até o fim glorioso. Os diretores acertaram nessa: Pelé como herói épico.

Assim que começam a rodar as duas horas de filme, vê-se um Pelé macambúzio, desanimado pelas lesões que sofrera na Copa do Mundo de 1962, em que o Brasil fora levado ao título por seu companheiro Garrincha – na época, isso significava bastante, pois não havia consenso sobre o maior jogador brasileiro, se Pelé, preferido pela mídia de São Paulo, se Garrincha, herói da mídia do Rio de Janeiro. Algo comparável a Messi x CR7 nos anos recentes –, e pela lesão que o tirou da Copa do Mundo de 1966, essa fatal às pretensões de um Brasil envelhecido e com Garrincha já na baixa que o levaria precocemente ao fim da carreira.

A declaração de Pelé é bombástica: pretende parar de jogar futebol. E isso faz o espectador se remoer em como seria o futebol sem os mil gols – 500 deles roubados pela FIFA, recentemente – sem os lances magistrais de seu auge na Copa do Mundo de 1970, sem a bola que não entrou no drible desconcertante em Mazurkiewicz (friso apaixonado pessoal: à época goleiro do Clube Atlético Mineiro). Haveria tri? A maestria brasileira seria tal consolidada a ponto de nosso penta em 2002, ou ficaríamos num bi-campeonato datado, como o do Uruguai, ou como os vice-campeonatos da Hungria de 1938 e 1954?

O jornalismo. Sempre ele...

Um bom começo para um miolo burocrático. O que se narra sobre o Rei, depois disso, é chover no molhado.

Sem a narrativa lúdica e focada em imagens de futebol e depoimentos de “Pelé Eterno” (2004), de Aníbal Massaíni Neto, “Pelé”, da Netflix, conta um pouco da história do Brasil e, assim, escorrega na ânsia atual de compreender fenômenos históricos, artísticos ou menos esportivos dentro das discussões políticas do presente.

Apresenta jornalistas, que serão a “voz over” – aquela que fica falando o que está acontecendo, como em documentários padrão “National Geographic” – do documentário, como Juca Kfouri e José Trajano, além de estranhas figuras como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB – 1995, 2002), e uma exótica participação do cantor Gilberto Gil. Vai bem, por outro lado, em escolher Rivellino, Zagallo e Jairzinho, seus companheiros de títulos mundiais, para falar de um Pelé dos bastidores.

A escolha de Juca e Trajano, embora pilares do jornalismo esportivo brasileiro, é engessada. Isso em virtude dos jornalistas muitos mais que fazem, hoje, sucesso entre espectadores, boleiros ou não, com visões novas. Um adepto do “não-saudosismo” como Bruno Formiga, um polêmico e reaça Rica Perrone ou uma afiada Milly Lacombe dariam mais pluralidade e de visões para debater o tema. Com Juca e Trajano, o tema se engessa na especialidade dos dois: esporte e política.

E eis que, nessa escolha, o documentário segue o pior caminho possível: “Pelé foi negligente ou mesmo apoiou a ditadura?”.

Uma boa má pergunta

Pelé falando sobre o passado brasileiro. Abaixo, ele levantando a taça Jules Rimet, ao lado do ditador Médici.

Evidente que, nos anos 1970, não apoiar ou ter vistas grossas para o regime militar poderia custar a sua vida, ou, se você fosse suficientemente rico para zarpar para a Europa, a vida de amigos e familiares. Portanto, sim, Pelé foi silencioso em relação ao regime.

Daí advêm associações a Mohammad Ali, que enfrentou o racismo, mas sem comparação, porque se tratava de uma democracia. Era razoavelmente “seguro”, embora tenham acontecido os assassinatos de Malcolm X e Martin Luther King.

Só que daí deriva a questão de se Pelé se posicionou ou não contra o racismo, se o pedido dele pelas criancinhas no milésimo gol foi ou não uma coisa superficial, e outras e outras perguntas que dizem mais sobre quem fala que sobre Pelé, e especialmente endereçadas a um dado público, nacional e estrangeiro, que vai assistir ao filme.

É sempre bom ver Pelé

Apesar de o documentário apostar em mais do mesmo, apenas atualizando técnicas e depoimentos, o filme vai bem em termos de imagens, narrativa in media res, gestão do tempo, montagens: é tecnicamente perfeito. E não deixa de ter valor documental você registrar um debate sobre o Pelé baseado numa visão política pró-democracia e antirracista, como um olhar para o Pelé nos dias de hoje. Mas, ainda assim, forçar a barra para fazer o objeto se encaixar no argumento é o que vem derrubando vários filmes por aí, ficção ou documentário.

Como é sobre Pelé, esse ele não derruba. Pelé sempre será Pelé. Se ele já fez filme fugindo de campo de concentração ao lado do Stallone, por que não um documentário sobre política que tem ele por personagem?

Isso não me faz dizer que o filme seja bom. Mas vá lá, veja os gols, os dribles, entre naquele mundo em que o Brasil era soberano e um homem negro se tornava um dos dez maiores homens e mulheres do século XX. Talvez o único negro a alcançar essa façanha, em plenos tempos de colonialismo e segregação racial.

Mas volte e veja “Pelé Eterno”.



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