
O Jardim Secreto e a conquista de Mary Lennox
O período literário da Revolução Industrial até o início da Primeira Guerra Mundial, na Inglaterra, costuma ser chamado de Literatura Vitoriana (cerca de 1850-1914), em alusão à Rainha Vitória, que governou o país durante a maior parte desse tempo, até sua morte em 1901. Diferentemente da literatura em língua portuguesa, muito influenciada à época pela francesa, passou longe da oposição entre romantismo e realismo, imergindo em cenários literários que misturavam ciência, ceticismo ao humano, elementos de paganismo e terror.
Desta leva vieram Oscar Wilde e seu “O Retrato de Dorian Gray” (1890), Emily Brontë e “O Morro dos Ventos Uivantes” (1847), Rudyard Kipling e “O Livro da Selva” (1895), aqui conhecido como “Mogli, o menino lobo”, por causa da Disney, e Arthur Conan Doyle com “As aventuras de Sherlock Homes” (1891).
Entre eles, estava o livro que será a base do filme clássico dessa semana, “O Jardim Secreto” (1911), de Frances Hodgson Burnett, um romance já tardio no período, que fala do choque de cultura entre ingleses da metrópole e ingleses colonos, de uma garota que sonha em ser mais que uma menina bem comportada, e da superstição que quase matou uma criança.
O filme foi adaptado ao cinema por produção de Francis Ford Coppola, aclamado diretor de “O Poderoso Chefão” (1972) e todas as suas sequências. Foram, porém, entregues as claquetes da direção à diretora polonesa Agnieszka Holland, que depois não voltaria a assumir trabalhos de grande repercussão, o que faz com que, até hoje, o filme seja atribuído a Coppola, seu financiador. Um fato curioso é que, nos testes para fazerem as personagens principais do filme, que são crianças, quase foram aprovados os atores Elijah Wood, o Frodo de “Senhor dos Anéis” (2001-2003) e Kirsten Dunst, a Mary Jane de “Homem-Aranha” (2002). Entretanto, os aprovados foram ator e atriz que não deslancharam no cinema em língua inglesa.
A garota da Índia (sem spoilers)
Na história, a garota Mary Lennox perde os pais num surto de cólera na Índia, lugar onde vivia com todo o luxo e os criados de uma elite colonizadora. Seu pai era um alto magistrado do Governo britânico no território ultramarino. Ela fica órfã e vai para a guarda do tio, que vive na metrópole, numa mansão luxuosa, mas meio abandonada e empobrecida. Não falta nada a Mary, mas ela não tem mais o luxo, a casa vive sob disciplina estrita conduzida pela governanta, a Sra. Medlock (potter-fãs vão perceber que ela é a Minerva McGonagall, professora de Hogwarts), e a garota fica ilhada num mundo a que não pertence.
Uma das saídas, para ela, é a criada que fica por conta de ajudá-la a se adaptar à casa, Martha, que logo apresenta a Mary o seu irmão Dickon, que trabalha nos jardins da mansão. Entre idas e vindas, ele conta sobre um jardim secreto que fica entre muros, bem à frente no território da mansão, o qual nem ele pode adentrar, apenas cuida para que sua vegetação não ultrapasse para o lado externo. Só o dono da casa, tio de Mary, pode visitá-lo quando volta de Londres, mas quase não o faz e evita a mansão por algum motivo que tem a ver com o próprio jardim.
As sombras da morte (com spoilers)
Cenas na mansão antiga, com crianças vestidas em estilo vitoriano e fugindo da atriz que faz a professora Minerva de Harry Potter, com a protagonista lembrando a Hermione de "A Pedra Filosofal", são um boom de nostalgia para fãs de J. K. Rowling.
Nesse entremeio, a protagonista ouve vozes dentro da casa. Vozes de uma pessoa chorando, que ela não entende bem o que é. Curiosa e pouco temerosa de fantasmas e afins, já que sua família era muito cientificista, Mary descobre que, num cômodo, está escondido um garoto doente. Ele é Colin, primo de Mary, que parece a ela, desde o início, mais mimado que doente. Com o passar do tempo, eles começam a conversar e ele, inicialmente, a rejeita, mas ela é teimosa e ele acaba cedendo por fazer uma primeira amiga.
A garota vai entendendo que tudo que Colin mais sente é falta do pai, e ninguém entende ao certo por que ele sumiu. Apenas se sabe que é em razão da morte da esposa, mãe do menino. E, a partir daí, as aventuras de Mary vão se dividir entre encontrar-se escondida com o primo, esgueirando-se pela casa e fugindo ao antagonismo suave da rígida, porém boa, Sra. Medlock, e investigar, ao lado de Dickon e Martha, o que aconteceu com a mãe de Colin, por que o tio/pai raramente volta de Londres e, finalmente, o que é o jardim secreto.
Com o passar dos encontros, Colin fica melhor, e Mary descobre que o isolamento, a falta de luz e a má alimentação estão tornando o primo fraco, não doente. Ela e os amigos organizam saídas escondidas do quarto para os jardins, com Colin em cadeira de rodas, o que a Sra. Medlock, sozinha, não consegue perceber. Numa dessas eles conseguem invadir o jardim secreto e veem lá nada mais que vegetação cercando um centro onde há uma cadeira de balanço. Ali, ainda sem saber onde estão, os quatro – Mary, Colin, Dickon e Martha – contam histórias, várias delas indianas trazidas por Mary, e se divertem, até que Colin toma coragem para andar. E consegue.
Isso muda a história porque, agora, Colin tem forças para buscar o pai e exigir que lhe conte o que é o jardim secreto.
Entre insistências com a Sra. Medlock pela comunicação com o pai, agora sustentadas no desejo do herdeiro da casa, e um pitoresco ritual indiano para o chamado ao destino, executado no meio do santuário perdido da cadeira de balanço, eles conseguem fazer o pai voltar e contar a verdade: Colin nasceu após a mãe, de sete meses, cair da cadeira de balanço porque o marido a empurrou forte demais, só o bebê sobreviveu. Ele ficou amargurado e fechou o jardim e nunca mais quis ver a casa ou a criança, cheio de vergonha, perdeu muito do dinheiro que tinha, empobreceu a mansão e viveu numa depressão sem fim. Colin, por sua vez, foi tratado por frágil por ser prematuro, e assim viveu por dez anos.
O triunfo do humano
O pai se reencontra com o filho e agradece à sobrinha
O filme termina com o congraçamento, e Mary é uma das protagonistas femininas mais potentes da Era Vitoriana, porque representa a resiliência do enfrentamento à orfandade para recuperar a paternidade de seu primo, até então desconhecido, nunca recaindo em desânimo ou ressentimento. Simboliza a ciência, ao rejeitar as crendices da Sra. Medlock sobre a doença de Colin, buscando o experimento ante a certeza, ao levá-lo para fora e testar sua saúde. Isso para descobrir que, ao fim, ele não tinha nada e estava fraco pela conjuntura que lhe era imposta. Também é uma mulher forte ao buscar a solução para o enigma do jardim, fechando pontas de uma história mal resolvida que prejudicava a todos.
Em tempos de representatividade, é curioso que Mary Lennox seja uma personagem do passado, tanto na literatura como nos filmes. A menina que vence dificuldades, suavemente vai dobrando o esquema rígido de uma família britânica, usa intuitivamente métodos científicos para curar um garoto e desvendar um mistério de ares arqueológicos, e consegue chamar um pai à sua responsabilidade e tirá-lo da autopiedade, é uma expressão verdadeira do poder de uma mulher em quaisquer esferas. Uma pena, uma pena, que tudo em hollywood tenha terminado em Rey, Barbie e Branca de Neve.