O Eternauta: suspense de sobrevivência no cinema argentino

Quem não viu “O Eternauta”, série de 2025 com direção de Bruno Stagnaro e atuação de Ricardo Darín em papel principal, exibida pela Netflix com roteiro baseado em quadrinhos de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, veja! Claro, se for um fã ou admirador do gênero ficção científica, sobrevivência e pós-apocalipse. Caso contrário… veja também! É uma série memorável por três motivos, os quais começo a listar a seguir.

Cinema argentino – primeiro motivo

Não é de hoje que os argentinos, apesar de passarem longe de ter a melhor moeda e só razoavelmente perto de terem o melhor jogador de futebol de todos os tempos, recentemente têm a melhor seleção de futebol e o melhor jogador da história recente. Porém, há algo em que superam quase todos – senão todos – os países, fora a banca infinita de dinheiro dos Estados Unidos: o cinema. Desde “A história oficial” (1985), filme de Luís Puenzo e estrelado por Norma Aleandro, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional naquele ano, a Argentina, a cada par de anos, produz uma joia de maior ou melhor brilho na sétima arte.

Para virmos desde o século XXI, já passamos por “O filho da noiva” (2001)”, quando o diretor Juan José Campanella aquecia seus motores para “O segredo de seus olhos” (2010), um dos pontos altos da história do cinema mundial e a joia mais rara do cinema noir tardio. Por ele, venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional, o segundo da Argentina. Depois, vieram outros como “Medianeras” (2011), “Relatos selvagens” (2015), este indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, a série “Jardim de bronze” (2017), exibida pela HBO, e o filme Argentina 1985 (2022), também indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional.

Cinema argentino, hoje, é sinônimo de qualidade. E mais: razoavelmente livre da parafernália woke que se vê na indústria americana. É garantia de sentar e assistir a um bom filme, com história, atuações, fotografia e tudo mais, sem lições de moral ou ideologias.

Roteiro denso e com reviravoltas – segundo motivo (sem spoilers)

Agora, chegamos a “O eternauta”, febre mundial da Netflix, infelizmente bem à frente da brasileira “Senna”, produção magnífica, mas criticada pela excessiva heroicização do ex-piloto, algo considerado condenável nos tempos pós-modernos que vivemos, em que o herói sai de cena e vilões e anti-heróis são as coqueluches do momento, vide “Coringa” (2019), de Todd Phillips com Joaquin Phenix no papel principal.

“O eternauta” conta a história de um grupo de amigos de meia idade, sendo os principais deles um homem chamado Juan Salvo e outro chamado Alfredo Favalli. Eles se reúnem periodicamente para jogar cartas, e numa dessas noites começa uma nevasca rara em Buenos Aires, em que quem se surpreende e sai para ver é tocado pela neve e cai instantaneamente morto. Também há perda de circuito de tudo que é elétrico, portanto a luz das casas e a partida dos carros com injeção eletrônica param de funcionar. Isso torna as pessoas presas onde estavam quando a neve começou, enquanto a ela cai a ponto de encher as ruas à altura das rodas dos carros e dos corpos caídos de quem foi pego na rua. Os suprimentos ficam restritos a locais que antes eram próximos, mas agora estão a uma nevasca mortal de distância.

Entretanto, Favalli tem um trunfo que, provavelmente, ninguém tem num raio de muitos quilômetros: é um colecionador de quinquilharias, tendo por hobby montar coisas a partir de outras. Isso permite que ele construa, com lona, artefatos de metal, borrachas etc, uma armadura similar à de um escafandrista, podendo seu portador valer-se da impermeabilidade para sair, sem ser tocado pela neve. Também mantém, sob o nariz torcido da mulher e dos amigos, um carro muito velho, que ainda pode funcionar porque dá partida por carburação.

O grupo de senhores, mais a esposa de Favalli e uma jovem que se abriga na casa pedindo socorro logo no início da nevasca, é um dos poucos, em toda Buenos Aires, que tem recursos para explorar a cidade e entender o que está acontecendo. Nessa condição, Juan Salvo, que tem família a buscar em outras partes da cidade e da própria Argentina, pede que lhe seja dado o primeiro escafandro de Favalli, e sai. Os amigos ficam para tentar contato com outras partes da Argentina e da América do Sul, via um sistema de rádio de guerra que o anfitrião mantém em sua coleção de velharias.

Apocalipse ou invasão? (com spoilers)

A saída de Salvo o defrontará com várias situações calamitosas, com gente comum que, para sobreviver, começa a tomar atitudes extremadas e criminosas, com pessoas abandonadas em situações precárias – como um grupo que, salvo da neve no único vagão de um trem que estava com as janelas fechadas, padece por fome e sede, amontoado no espaço cheio e com o trem cercado por cadáveres de pessoas que tentaram fugir ou morreram nos outros vagões.

Porém, o pior vem quando ele descobre que mais que a neve está chegando.

Com ela, vêm estranhas criaturas parecidas com besouros, que não se sabe se transformam o ser humano num casulo e levam para suas habitações subterrâneas, ou se as levam já mortas para lá. À medida que a série progride, e também o restante do grupo de Salvo encontra sua forma de sair de casa e rodar a cidade, todos se encontram, e terão de defenderem-se do que parece um ataque alienígena que se apodera de todo o mundo.

A partir disso é roteiro guardado para a segunda temporada…

Quadrinhos argentinos e ditadura – terceiro motivo

Na sexta-feira da semana anterior à última, falamos de “Ernesto” (1978), publicado no Brasil pela ComixZone, quadrinhos desenhados pelo mesmo Francisco Solano López de “O eternauta” (1957), aqui lançados pela Pipoca&Nanquim. O país que produziu a lendária Mafalda (1964), do cartunista Quino, vendida no Brasil pela Martins Fontes, também se faz forte na cena mundial dos quadrinhos com, por exemplo, “A fortaleza móvel e o mundo subterrâneo” (1980), de Ricardo Barreiro e Enrique Alcatena, publicada no Brasil pela Pipoca&Nanquim, um tipo de Conan com características grind e gore bem no clima dos anos 1970 e 1980, quando bombavam terrores à “O massacre da serra elétrica” (1974) e “Sexta-feira 13” (1980).

Portanto, “O eternauta” é um convite aos quadrinhos argentinos.

Vale ressaltar, finalizando, que todos esses cartunistas, de alguma maneira, contam a história de seu país, ao terem sido perseguidos pelo regime militar de Rafael Videla (1976-1981) e Leopoldo Galtieri (1981-1982). Com muito menos tempo que no Brasil, oito anos de ditadura contra vinte, o regime militar daquele país conta, ainda buscando desaparecidos, cerca de 10 a 30 mil mortos, enquanto, no Brasil, foram 20 anos de ditadura com confirmados 434 vítimas nas contas da Comissão Nacional da Verdade.

Entre esses mortos está Hector Germán Oesterheld, desaparecido em 1977, por pertencer ao grupo guerrilheiro de esquerda “Motoneros”, que buscava a redemocratização do país, sob a mesma orientação peronista de esquerda que governava a Argentina, até o golpe contra a presidenta Maria Estela “Isabelita” Perón (1974-1976). “O eternauta” dá mostras do pensamento que levaria Oesterheld a se opor violentamente ao regime militar, numa obra que trata de sobrevivência, inciativa armada individual contra o caos, prevalência da microorganização contra a autoridade centralizada etc.

Uma crítica que valeria, inclusive, aos dias atuais.



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