
Nighwish, Once e o ápice do lirismo no rock
Os meados dos anos 2000 foram marcados pelo rock ramificado em vários diferentes estilos, após a dissolução de Guns’n’Roses e o fim do hard rock oitentista, e a tragédia do grunge com o suicídio de Kurt Cobain. Isso já foi discutido aqui em texto sobre Bring Me The Horizon e o passo à frente feito pela banda em relação ao chamado “new metal”, gênero nascido da incerteza musical da primeira década deste século.
Pois foi nesse contexto, da virada do milênio, que ficou marcado o retorno efetivo das mulheres aos microfones do gênero, na primeira prateleira das bandas daquele tempo, com um derivado de heavy metal, rock progressivo e um pouco de new metal que, convencionou-se, ficou chamado “gothic metal”, encampado no “power metal” ou afins.
Aqui se está falando do boom dos vocais líricos, que começa com Evanescence com o álbum “Fallen” (2003) e a potente “Bring me to life”, ganha uma rival à altura com a já experiente Nightwish e seu álbum popular “Once” (2004), da delicada e chicletassa “Nemo”, e depois vai se desmembrando em bandas menores como Epica, After Forever, Lacuna Coil e por aí vai. Todas essas bandas tinham o diferencial em relação a um passado do rock estacionado desde Janis Joplin, nos anos 1960: pelas quatro décadas seguintes, mulheres no rock eram algo peculiar, por vezes caricato e imitador das bandas masculinas.
Com a onda dos vocais líricos, abriu-se o espaço. Ainda faltaria o espaço para outros tipos de vocal e para mulheres instrumentistas, hoje sendo conquistado, mas, para os 2000s, era um passo e tanto.
Por isso, hoje o Literatura e Jornalismo fala de “Once”, álbum do Nightwish que demonstra a maestria vocal de Tarja Turunen, que para muitos (não propriamente para ela) rivalizou com Amy Lee, de Evanescence, pelo posto de maior vocalista feminina da geração. Bobagem de fans. Fato é que ambas lideraram uma cena que renascia a presença feminina nos palcos e contribuía, e muito, com novas concepções estéticas que seguem, cada uma à sua maneira, com bandas como Nervosa e Crypta, no Brasil, Eluveitie, na França/Suíça, ou como LiSA, Kalafina, Babymetal e outras, no Japão. Este último, inclusive, tomou a ponta nesse “segmento”, por assim dizer, e tem sua cena dominada por vocalistas e, nas últimas gerações, instrumentistas mulheres, essas últimas destaque em Hagane e BandMaid.
A anja que repousa na lápide
A capa de “Once” já é emblemática e marca o estilo melancólico e doce que Nightwish assume no disco, diferente dos mais pesados, mais definidamente dentro do “power metal”, “Wishmaster”, da pesada e soturna faixa título, e “Century Born”, do clássico “Ever dream” e da reedição de “Phantom of the Opera”.
Nela, uma anja esta caída sobre a lápide de um cemitério, como se chorasse a morte de quem ali jaz. Ela se baseia num túmulo do Cemitério Protestante de Roma, dedicado a Emelyn Story, uma norte-americana nascida em 1820, em Houston, e falecida em Vallambrosa, Itália, em 1895. O escultor era o seu próprio esposo, William Wetmore Story, e a obra tinha, como conceito explicado pelo autor, o anjo do sofrimento chorando sobre o altar desmantelado da vida. Apesar de a obra ter ficado conhecida pelo disco, estava lá, discreta, por muitos anos, e pouco se sabe sobre o casal.
Em “Once”, uma música é o fio condutor entre a identidade clássica do Nightwish, “Wish I had an angel”, um petardo feito em dueto vocal entre Tarja Turunen e o baixista e co-vocalista Marco Hietala. As demais são puro virtuosismo e delicadeza, com sensibilidades variadas que vão desde o épico marítimo “Ghost love score”, com dez minutos falando sobre ondas e aparições de sereias, representando a dor de um amor perdido e dos conflitos sentimentais vários que o envolvem. Uma canção que, ouvida pela primeira vez, surpreende com suas mudanças de tom e melodia, percorrendo momentos que significam sonoramente as metáforas e mensagens presentes em cada momento da letra, amarrados no conceito principal.
É a joia do disco, mas não seu maior sucesso. “Nemo” assumiu esse lugar, por ser uma canção simples, “piano-riff-estrofe-refrão-solo-estrofe-refrão-riff-piano”. Uma reflexão simples sobre a existência, nos vazios anos 2000 da globalização e da falta de caminhos, que impactava um próprio rock’n’roll multifacetado e perdido sem a mídia e o glamour de antes, imerso num underground que Nightwish logrou deixar por algum – curto – tempo. Entre 2004 e 2005, ficou algumas semanas no Top-10 da MTV, o que substituía as listas da Billboard de antes, e hoje seria equivalente às playlists de mais ouvidas do Spotify.
Para quem não lembra, a pessoa telefonava gratuitamente, ou pedia votando no site do canal na jurássica internet discada, para ver o clipe de sua música favorita num programa que ia ao ar às cinco da tarde, em cada país do mundo, com catálogos sempre mesclando sucessos nacionais e internacionais. Nightwish conseguiu ser estável na MTV dos principais países, entre eles o Brasil, surgindo daí a disputa entre os fãs da banda e os de Evanescence, que também emplacava sua “Bring me to life”.
As duas, junto aos loucos armênio-americanos de System of a Down e sua “BYOB”, eram as bandas que punham a cabeça para fora, num cenário dominado por bandas de pop-rock e pop-hardcore como Capital Inicial, CPM-22 ou Charlie Brown Jr., ou por Hip-Hops variados do mundo todo e toda sorte de baboseira pop como as excêntricas russas de t.A.T.u.
O tesouro escondido
Se “Wish I had an angel” era a porrada clássica do metal, que agradava aos fãs mais exigentes do gênero, “Ghost love score” era o elemento de lirismo absoluto e “Nemo” era a canção simples e delicada feita para o grande público, um tesouro estava escondido dentro do álbum.
“Creek Mary’s Blood”, uma música sobre o extermínio indígena, perfazia o lamento da extinção do povo Lakota, do meio-oeste americano, na voz de Tarja e nos instrumentais de “John Two-Hawks”, herdeiro étnico do povo extinto e dedicado à preservação de sua cultura. Discreta no disco, a faixa ganharia performance ao vivo inesquecível no DVD lançado pela banda em 2007, “The end of an era”.
Curiosa e lamentavelmente, com um nome que significava o momento da banda: a parceria entre Marco Hietala, o dono da marca Nightwish, e Tarja Turunen se encerrava por dissidências internas na banda. Do auge, Nightwish retornou ao underground por muitos anos, e Tarja jamais emplacou carreira solo, tendo vivido de participações com bandas sólidas, entre elas o Angra, no DVD Angels Cry 20th Anniversary, de 2013.
Hoje, a banda se estabeleceu como um rock progressivo altamente bem avaliado pela crítica especializada, e frequentadora de grandes festivais, tendo nos vocais a poderosa Floor Jansen, que antes liderara o After Forever. Sem mais os vocais líricos e mais uma explosão de força, à Bruce Dickinson. E sem voltar a concorrer com o mainstream da música comercial, papel que hoje é exercido pelas meninas do J-Rock, especialmente LiSA e Babymetal.